aparição

apareceu sem avisar botando sonzeira na radiola, marcando o ritmo com os dedos nas paredes nos patamares nos batentes na porta, fervendo água no fogão pro miojo de galinha, mandando o tal do pozinho pra dentro, paralelos de pozinho (onde arranjou essa merda?), tudo isso quase ao mesmo tempo – desfazendo minha ilha de sono.

levantei-me contrariado.

– te atrapalho?
– que nada… cochilava macio apenas.
– mesmo?
– ô!…
– mesmo sincero? se quiser eu…
– você fica sossegada, fica sossegada.

por que só de madrugada, sempre tal surpresa? juntei uma papelada avulsa na gaveta da escrivaninha, escondi no calção a chave, virei-me e repassando por ela, a moça já acomodada com os olhões desse tamanho:

– posso passar aqui contigo? caio no sofá… só hoje. não mexo em nada.
– por que a essa hora?
– deu vontade; além disso, expulsei-me daquele tédio.
– fique, então. tem de-beber na geladeira e um cobertor nos fundos… qualquer coisa só chamar.

logo voltei pro meu recato e me dediquei total a ele.

quando acordei com a passarinhada gritando na árvore pelo solzão novo ela já havia se safado: deixado um castelo de panelas, subtraído aquele cd… sua letra sem capricho no bloco de notas:

"escrevo na parede as minhas rimas
de painéis a carvão adorno a rua;
como as aves do céu e as flores puras
abro meu peito ao sol e durmo à lua."

This entry was posted in Mentiras Avulsas. Bookmark the permalink.